Tem a ver com a ideia de cultura, a que passa pela viagem, pela visita a um monumento, pela contemplação. Hoje, proponho o séc. XII, muito vizinho de Lamego e de Tarouca; numa das terras tinha eu uma livraria que, no final da adolescência, era assaltada todos os trimestres com a finalidade de pesquisar raridades (de romances dos anos 60, monografias, história, "assuntos locais"); na outra, Tarouca, o prazer de ver as casas e os muros velhos, aquela transição entre o Douro e a Beira com solares e miradouros nos vales onde chegavam as vinhas e o perfume do rio.
O CENTRO DO POLÍGONO
As estradas a partir de Lamego e Tarouca levaram-me, no ano passado, a uma das raridades da região – varandas sobre o vale, descendo sempre entre vinhas e olivais, entre restos de azinho e nevoeiros que pertencem à margem esquerda do Douro, a mais fria. Se desenharmos um polígono cujos vértices são Lamego, Tarouca, Moimenta, Tabuaço e Armamar, então Salzedas é uma espécie de centro nevrálgico da região, um marco geodésico de baixa altitude, rodeado de estradas secundárias que, ora descem para o Douro, ora sobem para as serras, com perdão dos vales do Távora e do Varosa.
É por aí que se chega a Salzedas, e a visão, ao longe, se for crepuscular (como foi da primeira vez que estive em visita), é também de primeira grandeza: dois monumentos cuja dimensão nunca se suspeita. O primeiro deles é a Igreja Matriz de Salzedas, com uma nave central espantosa e vestígios de reconstruções seculares, aguardando recuperação algumas delas (o responsável pela paróquia, o padre António José Seixeira, será um digno guia e explicará por que estão ali sepultados os primeiros condes de Marialva); o segundo é o Mosteiro de Salzedas, uma construção sem o desejo de grandiloquência do séc. XVIII, presente na Matriz, ao lado – em cujo interior os claustros, as escadarias e os labirintos de pedra nos reenviam a meados do séc. XII.
A história de Salzedas e do seu mosteiro cisterciense cruza-se com a de toda a região, como lugar de repouso, de refúgio ou de contemplação, coisa que desde o séc. X nos permite falar de um eremitério naquelas encostas cuja genealogia nos leva ao primeiro rei. O mosteiro, agora aberto ao público, é mais do que uma obra de arquitectura religiosa – ele obriga-nos a repensar a relação entre a arquitectura e o espaço, entre o poder e a geografia, entre o céu e a terra.
A primeira vez que visitei Salzedas impressionou-me pela abundância de espaço, pela escuridão dos claustros, tanto como pela beleza que acompanhará o visitante que tiver a sorte de uma tarde de sol no gigantesco terraço. No interior, primitivos portugueses (a escola de Grão Vasco com algum do seu esplendor), ourivesaria que atravessou o tempo, arqueologia local, um enquadramento museológico tão simples e rudimentar como belo. Que o lugar de Salzedas tenha abundância de registos (romanos, lusitanos, suevos, visigóticos, muçulmanos e judaicos), acaba por ser um pormenor diante da grandiosidade do seu isolamento.
Local: Mosteiro de Salzedas (Tarouca) gps 41º3’16"N, 7º43’32"W
As escolhas de Francisco José Viegas
(Fonte: Correio da Manhã)
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